Por uma história preta no design.
Relatos de uma experiência negra na construção de um projeto de identidade.
Retornar ao passado, ressignificar o presente e construir o futuro.
Quando eu, Raimundo Britto, fui procurado pela Carolina Ferreira para redesenhar a marca do História Preta, tive a ideia imediata que estava com um imenso presente nas mãos — criar a nova linguagem visual de um projeto sobre a história e cultura negra e a oportunidade de poder materializar através do design, um aprendizado que venho construindo ao longo dos anos sobre a minha própria identidade, como designer negro, nordestino e baiano.
História Preta é um podcast criado em 2019 pelo Thiago André, um historiador carioca que busca resgatar a memória e o conhecimento sobre a população negra através de episódios quinzenais — roteirizados e narrados por ele — que abordam desde temas cotidianos como música, arte, beleza e futebol, à conteúdos sobre identidade, violência do estado e racismo.
Uma iniciativa fundamental para contar nossa história a partir das nossas próprias experiências, desde as origens no continente africano, legado para a humanidade e consequências do deslocamento forçado provocado pelos europeus, à rica produção artística contemporânea que tem sido desenvolvida ao redor do mundo.
Dando início ao trabalho, comecei uma pesquisa para identificar quais elementos dariam conta da grandiosidade de uma cultura tão diversa quanto o número de povos ancestrais que construíram uma identidade que podemos chamar hoje de preta.
Durante o processo também identifiquei a importância do projeto se contrapor à estéticas primitivistas comumente utilizadas em projetos de design relacionados à negritude.
Entendi que o caminho seria construir uma linguagem baseada na ancestralidade, mas com olhar no futuro, dialogando com as novas gerações. Colocando a existência negra no centro da discussão e posicionando o podcast como um projeto potente e inspirador.
Arte e ancestralidade como declaração política
Pesquisando referências visuais, busquei evitar clichês e esteriótipos que reduzem a complexidade de todo um continente à ideia de um conglomerado homogêneo e primitivo. Para isto, utilizei apenas produções desenvolvidas por pessoas negras, me baseando na imagem de uma África real.
Por ter estudado e produzido fotografia documental durante algum tempo, eu sempre tive o retrato como inspiração do meu trabalho como designer gráfico. Para este projeto, quem me apontou o norte foram dos fotógrafos Seydou Keïta — nascido no Mali e hoje reconhecido mundialmente pelo trabalho que produziu em seu estúdio localizado no centro da capital Bamako entre 1948 a 1962; James Barnor — nascido em Gana e ao longo da vida vivendo entre Acra e Londres documentando a comunidade negra da década de 50; Mario Macilau, um jovem fotógrafo moçambicano que discute o hoje a partir de signos ancestrais. E a artista sul-africana Buhlebezwe Siwani que utiliza performances e instalações visuais para falar sobre a representação negra na atualidade.
Em comum, a reivindicação do protagonismo negro sobre a produção de narrativas de nossa própria história.
O segundo ponto de referência foi o Afrofuturismo. Um movimento artístico, estético e cultural que propõe uma conexão entre a ancestralidade africana e o futuro. O termo, cunhado em 1994 durante uma entrevista com três intelectuais negros americanos: Tricia Rose, Samuel Delany e Greg Tate, publicado pelo crítico cultural Mark Dery no artigo "Black to the Future", debate sobre a predominância de narrativas brancas e coloniais sobre a ausência de narrativas pretas, produzidas por pessoas pretas. Fala sobre a construção de um futuro possível a partir do resgate do passado roubado pelo colonialismo europeu.
Apesar de ter ganhado uma nomenclatura apenas nos anos 90, suas bases se originam na década de 60 a partir das ideias vanguardistas de músicos como Lee “Scratch” Perry, George Clinton e seu coletivo Funckadelic (ouça o disco Maggot Brain) além do gigante Sun Ra (ouça o disco Sleeping Beauty), um multiartista do jazz americano completamente imerso na revolução cultural do período, que propôs um futuro distópico a partir da libertação do povo afro-americano e o seu retorno para "Saturno", uma metáfora sobre a saída da terra (colonialismo) e volta para o espaço (afrocentrismo).
Aqui entra o AfroPunk, um festival de cultura negra criado em 2005 pelo cineasta americano James Spooner durante a estreia de um documentário que discutia a cena punk local como massivamente branca, enquanto negros obtinham espaço apenas no hip hop ou Rhythm and Blues. A festa despretenciosa de três dias cresceu e hoje possui edições em Joanesburgo, Londres, Atlanta, Paris e mais recentemente uma edição histórica e online no Brasil tendo como palco a cidade de Salvador (não deixe de ver o show da cantora baiana Larissa Luz). O festival celebra a cultura negra através de música, artes visuais, performances, estética, moda, design, discussões sobre identidade, gênero, sexualidade e ativismo político, um projeto criado e protagonizado por pessoas negras.
Foi em sua identidade visual — que tem como principal elemento um logotipo em caixa alta inspirado nas tipografias urbanas de estêncil — onde observei pela primeira vez a utilização da cor preta como elemento visual. Desde então tenho observado a utilização do preto em outros projetos e o que poderia parecer monótono, se tornou um ponto de identificação cultural e reivindicação de nossa negritude.
Durante a pesquisa encontrei também a exposição As, Not For do designer e curador americano Jerome Harris. Um levantamento que tenta resgatar a produção dos designers gráficos negros do século passado e questionar a produção atual, predominantemente branca e baseada apenas nas experiências vivídas por designers europeus e norte-americanos.
O projeto gráfico expositivo possui um logotipo em estilo lettering rascunhado, títulos que seguem a mesma linguagem e retratos riscados em alusão ao apagamento do design criado por mentes negras dentro da universidade. Designers como Emory Douglas, LeRoy Winbush, Archie Boston e Buddy Esquire, fundamentais para o enriquecimento da historia do design, que tiveram seu legado invizibilizado em prol de uma estética euro-centrista, predominante tanto no ensino quanto na produção do design.
Tudo isto começou a ressoar em varios questionamentos que tenho sobre o design. Como por que estudamos William Morris nas faculdades, mas nunca fomos apresentados ao trabalho da sul-africana Esther Mahlangu. Ou por que temos David Carson e Milton Glaser como referências, mas conhecermos muito tarde o trabalho do nigeriano Lemi Ghariokwu, designer e ilustrador responsável pelas capas do lendário cantor Fela Kuti.
Assim como é ensinado da forma mais racista possível que "étnico" é a estética criada pelo "outro", leia-se qualquer cultura que destoa da branca — seja negra, indígena ou oriental.
Um visão absurda que além de reforçar estereótipos, coloca o design europeu como base, norma e regra para tudo, negando a existência das incontáveis experiências gráficas produzidas em outros contextos ao redor do mundo.
Exú matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje
Sob a influência de todas as referências analisadas, dou início aos primeiros rascunhos e chego a um logotipo de traço forte, espontâneo, com hastes geométricas interligadas e que remetia à ideia de união, ação coletiva e organização.
Comecei então a perceber que o rascunho tinha uma estrutura muito similar aos artefatos de ferro tradicionalmente utilizados para representar os orixás no Candomblé — uma religião originada no Brasil, mas baseada na cultura cotidiana, crenças e cultos trazidos pelo africanos. Um povo que foi escravizado, arrancado de sua terra, “batizado” pela Igreja sob novos nomes cristãos, proibido de professar sua fé e que teve como único ponto de ligação com o passado, apenas suas memórias.
Observei também que as letras "E", "T" e "A" da palavra "Preta" formavam uma estrutura similar à ferramenta consagrada ao orixá Exú (Èṣù) cultuado na cultura Iorubá — uma sociedade dividida entre as regiões da Nigéria, Benin, Gana, Togo e de onde foi trazida a maior população de africanos escravizados para o país. É o orixá mensageiro que representa o arquétipo da comunicação e da transmissão de conhecimento entre o Orum (mundo espiritual, orixás) e o Ayê (mundo físico, seres humanos). Que por sincretismo religioso forçado e medo de uma figura que não se encaixava na narrativa cristã, foi intencionalmente associado à representações deturpadas, projetadas pelo imaginário europeu. Ao passo que em sua essência, não existem personificações do bem ou do mau dentro do Candomblé, tudo se complementa em equilibrio e Exú representa exatamente esta característica da subjetividade humana.
Por sua estrutura similar à uma ferramenta ritualística, é possível também associar o trabalho à Ogum — orixá que possui como símbolo o ferro e que de acordo com a tradição iorubá, representa os avanços tecnológicos da humanidade.
Enquanto Exú é a comunicação, Ogum representa a tecnologia pela qual este conhecimento se propaga. Por se tratar de um podcast sobre a história preta, as ideias começaram a fazer todo sentido.
Além disto, os povos africanos sempre possuíram um conhecimento técnico profundo sobre a manipulação dos metais. Com a escravidão, esta tecnologia foi transferida para o Brasil e utilizada tanto para ferramentas de trabalho quanto na arquitetura. Hoje felizmente ainda visíveis nos gradis de cidades como Olinda, Ouro Preto, Tiradentes e Paraty.
Em Salvador, além das obras presentes no Centro Histórico, temos como herança viva deste ofício o trabalho do ferreiro José Adário. Nascido em 1947 na cidade de Cachoeira, região do Recôncavo Baiano, possui o cargo de babalorixá e se dedica à criação de objetos litúrgicos. Respeitado pelo povo de santo de todo país, é um dos últimos ferramenteiros do Candomblé e um artista que há 60 anos preserva a tradição africana de forjar o ferro.
O História Preta fez um episódio inteiro falando sobre Exú, um dos melhores do canal. Vale muito a pena para quem quer conhecer mais:
Ao ponto em que a marca ia ganhando uma forte narrativa construída a partir da sabedoria africana, fui percebendo também que o trabalho falava muito sobre a minha própria história.
Moro em Salvador desde os 18 anos, mas nasci e fui criado no interior da Bahia, numa cidade chamada Feira de Santana. Acontece que aqui existe um costume muito antigo onde as famílias oferecem comida para as crianças como agradecimento por graças alcançadas e para trazer prosperidade para a casa — chama-se Carurú de 07 meninos (nome de um dos pratos de origem africana servidos na comemoração). Um celebração trazida da África e que foi incorporada ao cotidiano dos baianos, mesmo entre as familias católicas, como a minha.
Tenho inclusive ótimas lembranças de infância, cercado de crianças ao redor de um grande tacho de carurú, que inevitavelmente, ao final da refeição, se tornava uma grande guerra de comida entre a gente.
Guardo com carinho e saudade todo o processo envolvido durante o preparo do banquete/oferenda que uma vez por ano reunia toda a minha família. Começando com a chegada da minha vó materna — quem detinha o conhecimento para condução das oferendas. Passando pela minha mãe comandando a cozinha; minhas tias, primas e irmãs cortando sacas imensas de quiabo ao redor de uma grande mesa improvisada; meus irmãos mexendo os caldeirões que ferviam em cima de uma fogueira montada no quintal; culminando numa grande festa que acontecia sempre na data do aniversário do meu pai, em setembro, com as 07 crianças servidas primeiro, claro.
Uma tradição trazida por nossos antepassados que sempre conviveu harmoniosamente ao lado de todas as santas no altar de casa. Mas que infelizmente, com o tempo, foi trocada pela realização de uma missa no mesmo dia. Apesar da preparação do prato ainda ser feito em casa, todas as expressões de religiosidade africana foram eliminadas.
Hoje, procurando conhecer melhor o meu passado, me deparo com ciclos que vem se repetindo ao longo de gerações na minha família e começo a compreender a oportunidade que estou tendo agora de quebrar alguns deles. Não abrir mão da minha própria história em direção à uma cultura que não me pertence, é o principal deles.
Referências
Bibliografias
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PATER, Ruben. Políticas do Design, 2016.
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural, 2019.
FANON, Franz. Pele Negras Máscaras Brancas, 1952.
Artigos e Reportagens
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Celebrating James Barnor
The first photographer to shoot Ghana in colour
The Guardian
Black to the Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. (FLAME WARS: THE DISCOURSE OF CYBERCULTURE).
Mark Dery | Duke University Press
Afrofuturism: From the Past to the Living Present.
Delan Bruce and Jabari Jacobs | UCLA
The radical jazz activist who worshipped aliens.
Paul Moody | Another Man
Celebrating the African-American Practitioners Absent From Way Too Many Classroom Lectures
Madeleine Morley | AIGA Eye on Design
Afrofuturismo: A Diáspora Intergaláctica.
William “Mumu” Silva | Medium
O que é afrofuturismo. E como ele aparece na cultura pop.
Camilo Rocha | Nexo
Os bastidores da chegada do Afropunk ao Brasil.
Karina Balan Julio | Meio e Mensagem
Seydou Keïta e a imagem desejada.
Adriana Dória Matos | Revista Continente
A história do Cadê os Pretos no Design.
Hon Porfirio | Medium
Onde estão nossas referências negras em Design?
Waguin | DDNBR
Eurocentrismo, Identidade e Negritude — Rompendo com a Hegemonia no Design
Wagner Silva| DDNBR
O Jabá de Ogum, Fotocronografia.
Lucas Marques
Transferência de tecnologia para o Brasil por escravos africanos
Guadalupe do Nascimento Campos
A rotina de Zé Diabo, um dos últimos ferramenteiros do candomblé no país.
Nelson Oliveira e Rafael Martins / UOL
Audiovisual
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Afrofuturism
The criterion Channel